Fernanda Odilla

Da BBC Brasil, em Londres

20/02/2018 16h50

Fazia pouco tempo que a delegada Eugênia Villa havia entrado para a Polícia Civil do Piauí quando um escrivão apareceu com um pedaço de orelha dentro de um frasco transparente. Era de uma mulher que havia traído o marido. Como castigo, ele decidiu cortar a orelha da companheira.

“Eu ouvi a mulher. No depoimento, ela declarou ser merecedora do castigo. Disse que o companheiro tinha razão em cortar a orelha”, conta a delegada. “Isso me tirou do eixo, porque eu nunca havia visto casos dessa natureza serem abordados na faculdade”, completa Villa.

Dezessete anos depois do episódio, a delegada chegou a Londres nesta semana para conhecer e aprender com a polícia britânica. Mas ela também vai poder compartilhar um conjunto de iniciativas que lhe rendeu prêmios no Brasil por mudar práticas dentro da polícia e ajudar a salvar vidas no Piauí. Entre elas está a criação de um aplicativo para celular que facilita a denúncia de casos de violência.

Além de criar aplicativo, integrantes do governo passaram a divulgar a iniciativa na tentativa de estimular usuários.

Desde o dia em que ouviu da vítima que o “castigo era merecido”, Villa, que antes de se formar em Direito fez arquitetura, decidiu direcionar a carreira para buscar soluções para casos de violência contra a mulher. Voltou para a universidade. Fez especialização, mestrado e, agora, cursa o doutorado.

Na polícia, ela montou em 2015 um núcleo de estudo e pesquisa para criar ações de prevenção e repressão à violência de gênero.

Desde então, os números de feminicídio caíram no Estado e as medidas que ajudou a implementar – incluindo um aplicativo com “botão do pânico”, algo antes acessível apenas a quem já estava sob algum tipo de medida protetiva judicial – ganharam selo de práticas inovadoras no enfrentamento da violência contra a mulher em um projeto do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A partir do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Violência de Gênero da Polícia Civil do Piauí (NUEPEVIGE), foram desenvolvidos ainda uma metodologia de investigação e protocolos de atuação policial específicos para esse tema e feitas campanhas de prevenção.

Em Teresina, passou a funcionar, inicialmente aos fins de semana, o “plantão do gênero”, em que mulheres em situação de violência doméstica e familiar poderiam ser atendidos preferencialmente por servidoras.

“O núcleo foi criado para sanar uma falha na investigação de assassinatos de mulheres na medida em que esses casos, embora tenham autoria conhecida na maioria das vezes, não são percebidos e apurados como um fenômeno de feminicídio”, explica Villa.

‘Salve Maria’

O Piauí possui a maior taxa de feminicídios de todo o Brasil. Dados do 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública indicam que, do total de mulheres mortas no Piauí em 2016, 57,4% foram vítimas de feminicídio, quando o homicídio se dá pelo fato de a vítima ser do sexo feminino.

A delegada pondera, contudo, que nem todas as unidades da federação registram a morte de mulheres como feminicídio. Segundo ela, o Piauí foi um dos primeiros a registrar o crime de feminicídio, considerado crime hediondo desde 2015. Mas ela admite que a violência de gênero é ainda um problema grave no Piauí.

Dentro do esforço para tentar melhorar a posição do Estado nos rankings de violência contra a mulher, a delegada participou ainda do desenvolvimento de um aplicativo de celular que permite que qualquer pessoa mande denúncias com vídeo, foto, áudio e texto com informações sobre a vítima e o agressor.

Lançado há pouco mais de um ano, o “Salve Maria” – batizado em referência ao nome mais comum das vítimas de homicídio e de agressão física, moral, sexual e patrimonial entre as mulheres – tem ainda um “botão do pânico” que emite um alerta com geolocalização para uma central policial que desloca a viatura mais próxima para atender a ocorrência.

O segredo, diz Villa, é a agilidade. “Tem que atender rápido. Se não tem atendimento rápido, quem vai apertar o botão?”.

Sem custo adicional

Não foi preciso convênio nem contrato com empresa de tecnologia para criar o dispositivo. Os próprios servidores do Estado desenvolveram a ideia e criaram o aplicativo em três meses. Foi um esforço conjunto entre funcionários da Secretaria de Estado da Segurança Pública e da Agência de Tecnologia da Informação do Estado.

“Não houve custo adicional, custou o nosso salário apenas e ele já seria pago se tivéssemos criado ou não o produto”, diz a delegada. .

Em 2017, foram registradas 147 denúncias por meio da inovação. O botão do pânico havia sido apertado nove vezes até o fim de novembro. Ainda assim, delegada não estava satisfeita com o resultado e acreditava ser possível salvar mais vidas.

“Ainda foi pouco usado. Estamos com proposta de difundir o aplicativo e capacitar policiais”, disse à BBC Brasil em novembro. Na época, ela anunciou que seriam organizadas caravanas para divulgar o Salve Maria que, no fim do ano passado, contabilizava 3,3 mil downloads.

Em janeiro deste ano, a polícia já registrou 64 denúncias coletadas a partir do Salve Maria, o equivalente a 43% do total do ano passado.

No fim de 2017, Villa disse à BBC Brasil que estavam sendo planejadas algumas mudanças no aplicativo que, por ora, só está disponível em Adroid. “Os técnicos asseguram que mais de 80% do Estado é coberto por Android”, diz, emendando que estão tentando criar uma versão para o iPhone também.

A ideia era criar um dispositivo que permitisse gravar áudio durante 30 minutos desde que o botão do pânico fosse apertado. Também estavam planejando uma forma de disfarçar ou esconder o aplicativo no celular. “Não é difícil de pensar que um homem que controla a mulher também controla o telefone dela e a impede de baixar um aplicativo como esse. Por isso, estamos bolando novas formas de estimular com que as pessoas usem o aplicativo”.

A maioria dos registros de 2017 feitos a partir do “Salve Maria”, segundo Villa, estavam relacionados à violência física. Muitas das denúncias foram feitas por vizinhos ou parentes.

Tipo exportação

Qualquer pessoa pode denunciar de modo sigiloso e seguro, garante a delegada. No ano passado, algumas ocorrências foram registradas a partir do aplicativo no Maranhão, próximo à divisa com o Piauí.

Como a polícia piauiense não pode agir no Estado ao lado, já há tratativas para que o Maranhão também passe a usar o aplicativo, adaptando o modelo de acionamento às unidades locais.

Segundo Villa, qualquer Estado brasileiro pode adaptar o aplicativo e usá-lo sem custo adicional. “Está pronto para ser exportado”, diz, satisfeita com o produto “made in Piauí”.

Ela diz que a grande vantagem do aplicativo é o fato de o botão do pânico estar disponível a todas as pessoas por meio do celular e não apenas às mulheres que já estão sob algum tipo de medida protetiva judicial – como acontece na maioria dos Estados.

Aos poucos, diz Villa, o número de feminicídios está caindo no Piauí. Foram registrados 32 em 2015 e 26 em 2016. Mas ela diz que foi preciso revisar todos os homicídios contra mulheres para averiguar se as investigações estavam sendo bem conduzidas e se, de fato a condição de mulher da vítima foi motivadora do crime.

Prêmio

O trabalho da Polícia Civil do Piauí garantiu o selo de prática inovadora no enfrentamento da violência contra a mulher em um projeto do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Instituto Avon.

Como prêmio, Eugênia Villa desembarcou no domingo para passar uma semana em Londres fazendo uma espécie de intercâmbio.

Além de Villa, também vieram à capital inglesa Denice Santiago, a major que protege 629 mulheres ameaçadas por homens na Bahia e investigadora Andrea Guirra, da Polícia Civil do Mato Grosso, ligada à rede de articulação que tenta humanizar o atendimento e agilizar processos para estimular que vítimas de violência reportem os crimes.

Piauí, Bahia e Mato Grosso foram os três primeiros colocados entre os 10 finalistas. Elas vão conhecer o trabalho e as iniciativas da polícia e de universidades britânicas relacionadas à violência de gênero durante esta semana.

FONTE: UOL

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