Por Wellington Soares – professor e escritor.
Numa dessas noites, daquelas que o sono não chega, resolvi embarcar nas páginas de Somos todos inocentes, de O. G. Rego de Carvalho, uma história de amor das mais fascinantes da moderna ficção nacional. Por dois e simples motivos: o trato poético da linguagem e o desfecho nada convencional do “happy end”. A narrativa se passa na Oeiras de 1929, cidade ainda provinciana e marcada por disputas políticas acirradas. No meio desse cenário belicoso, dois jovens enamorados, Raul e Dulce, de famílias tradicionais, tentam entrelaçar seus corações eivados de paixão. Lançado em 1971, tendo merecido o Prêmio Coelho Neto de romance, instituído pela Academia Brasileira de Letras (ABL), o livro tem caráter dramático. Mas vamos ao enredo desta que é tida, das três que o autor oeirense lançou, sua obra mais tradicional.
Depois de formado no Rio de Janeiro, Raul retorna a Oeiras com dois objetivos mais ou menos delineados: montar um consultório médico na cidade, reforçando assim o prestígio dos Ribeiros, e casar com Dulce, antiga paixão e filha de família adversária – “Entre as ruínas da cadeia, Dulce lembrava-se da manhã em que, protegida pelas rótulas da janela, entrevira a chegada de Raul. Seu porte baixo, porém garboso, era inconfundível. Quem não o conhecesse, logo imaginaria ser descendente do velho Joaquim Ribeiro, tal a semelhança. Como o avô, usava suíças e não dispensava o chapéu de palhinha, nos dias de muito sol.” Nos dois casos, entretanto, ele não é bem sucedido, até pelo fato de não ter realmente um projeto de vida bem definido. No primeiro, não sendo capaz de exigir dos familiares ricos um local próprio de trabalho, fica ocioso e aberto aos apelos “perniciosos” do plano terreno. Em segundo, por não lutar com determinação pelo amor de Dulce, embora já tivesse encomendado as alianças para o casamento, termina se perdendo nas veredas mesquinhas da vida.
Como um aprendiz de Don Juan, incapaz de resistir aos encantos femininos, Raul termina se envolvendo ainda com mais duas outras moçoilas da cidade – Amparinho, filha do juiz João Mendes, com quem chega a namorar; e Pedrina, jovem pobre que engravida, abandonando-a logo após, sem remorso e sem prestar nenhum tipo de assistência – “ A custo Pedrina conseguiu arrastar-se até a rede. A dor aumentara e em suas pernas corria agora um filete de sangue. Sozinha na casa, na desesperança de rever Dulce, temia finar-se sem a assistência de uma só pessoa. O ventre começava a revolver-se, contraindo-se para expelir um pequeno ser ainda em formação, que fecundara e morrera em suas entranhas.” Das três, entretanto, é por Dulce que ele se sente, de fato, atraído e interessado. Ela, que desobedecera ao pai indo à festa no Sobrado, para demonstrar a reciprocidade de sentimentos, se desencanta com Raul a partir do momento que a trocou por Amparinho, na época sua melhor amiga; e, sobretudo, quando ele engravida Pedrina, órfã de mãe e criada por um pai alcoólatra.
Com a desilusão amorosa, nasce em Dulce, movida por um espírito religioso, a vontade de ajudar as pessoas. Daí socorrer Pedrina na hora do aborto, convencendo a mãe, dona Odete, a recebê-la em casa para os devidos cuidados. Gesto esse dos Barbosas que só faz aumentar a inimizade com os Ribeiros, alimentada especialmente por dona Nini, a mãe de Raul tomada de ódio e preconceito. Lembrando um pouco o clássico Romeu e Julieta, essa bela história de amor, diferentemente do clássico de William Shakespeare, tem o desfecho em aberto, sem a necessidade de sacrificar os pombinhos em nome desse sentimento que “nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê”. Taí uma boa leitura para aliviar as tensões do cotidiano e aplacar, ainda que por alguns instantes, a crise política que assola o Brasil.