Viatura igual a que levou os parnaibanos presos, da crônica de Alcenor Candeira Filho.

Viatura igual a que levou os parnaibanos presos, da crônica de Alcenor Candeira Filho.

Alcenor Candeira Filho, jornalista, advogado e escritor

Há tempos alguns amigos me cobram um texto sobre episódio acontecido no Rio de Janeiro, no sombrio ano de 1970, que resultou na prisão de vários parnaibanos efetuada em apartamento da rua Senador Vergueiro, Flamengo, em final de tarde de um sábado.

Os parnaibanos foram levados em três viaturas policiais (fuscas) com sirenes ligadas e barulhentas à delegacia da rua Bambina, em Botafogo.

Após enfadonhos depoimentos, todos fomos liberados sem necessidade de habeas corpus, com direito a imediata comemoração em bar próximo da delegacia.

Nunca nos envergonhamos nem nos vangloriamos da ocorrência: afinal de contas não éramos heróis e fomos detidos por pouco tempo – no máximo sete horas – , não pela prática de ato delituoso mas pelo simples fato de havermos “entrado de gaiatos no navio” ou de estarmos “no lugar certo em hora errada”.

O lugar era “certo” porque se tratava do apartamento do 11º andar em que moravam os parnaibanos Weber Mualem de Moraes, Antônio Dutra (Cambel) e os irmãos Benedito, Paulo e João Paulino Soares. O pequeno apartamento era um dos lugares de reunião de nossa turma nos finais de semana e por isso eu, Gervásio Pires de Castro Neto, Raimundo Furtado de Mendonça Neto (Raimundinho Arraia) e Arnaldo Prado lá nos encontrávamos como visitantes.

Nessas visitas costumávamos tomar os primeiros copos de cerveja para, em seguida, com a chegada da noite, vagar de bar em bar até o amanhecer, porque gostávamos de ver o sol nascer no vazio da cidade maravilhosa.

Se o lugar era “certo”, o momento foi “errado”, porque ninguém esperava a chegada repentina de Antônio Dutra, o Cambel, inteiramente fora de si, furioso, desafiador, provocador, insultando o tempo todo os irmãos Soares. Lembro-me de uma panela com ovos no fogão e de Cambel ameaçando jogar nos desafetos a água que nela fervia. Ele bradava: “Aqui, só respeito o Noba, porque joguei botão na casa dele várias vezes e sempre perdia”. Nunca se soube se Cambel estava drogado. Mas sem dúvida estava transtornado. Chegou a agredir fisicamente os irmãos Soares, que reagiram moderamente, na medida suficiente para dominar ou domar o agressor. Em verdade, todos tínhamos as mesmas parnaibanas raízes e éramos amigos.

Mas Cambel estava possesso. Mesmo depois da surra que levou, começou a jogar da janela do apartamento garrafas vazias de cerveja no pátio do edifício. Os vizinhos ligaram, e logo viaturas da polícia estacionaram em frente do prédio. Os policiais entraram no pequeno apartamento, com armas na mão e gritando: “Todos com as mãos na parede”. E visitantes, moradores e apartamento foram minuciosamente revistados. Nenhuma droga foi encontrada. Em seguida, todos fomos algemados: eu junto com Gervásio, Raimundinho com Arnaldo, Benedito com Paulo, enquanto Cambel e João Paulino foram algemados sozinhos.

Weber havia saído do apartamento minutos antes da chegada da polícia. Saíra para buscar socorro. Um oficial da aeronáutica, morador do prédio e amigo de Weber, explicou aos policiais quem eram os envolvidos. Nenhum bandido. A preocupação

maior era com Maninho Medeiros, que morava no Flamengo e visitava sempre os conterrâneos naquele endereço.

Maninho saiu de Parnaíba nos anos 60 para morar no Rio de Janeiro, deixando na cidade natal e no curriculum a fama de comunista. Envolvido em inquérito policial militar instaurado em Parnaíba em 1964, foi preso e impedido de tomar posse como funcionário do Banco do Brasil após aprovação em concurso, sob a acusação de ser subversivo. Anos depois, conseguiu assumir o tão sonhado emprego. Os órgãos repressores chegaram à conclusão de que Maninho era apenas um cidadão decente que defendia a dignidade humana. Mas no momento dos acontecimentos narrados, a eventual prisão de Maninho, que felizmente não aconteceu (ele fora avisado pelo Weber do que estava ocorrendo lá em cima), poderia ressuscitar encrencas do passado em razão de registros em sua ficha no DOPS.

Na delegacia da rua Bambina, prestamos depoimentos até de madrugada. Do momento de meu depoimento, lembro a indumentária quase carnavalesca do delegado: camisa manga comprida amarela/corrupião, gravata verde/pavão e calça preta/urubu. Não fitei os sapatos ou meias, mas os cabelos compridos com rabo de cavalo jamais me sairão das retinas.

Ao saber que eu fazia o quarto ano de direito, disse: – Você está começando muito bem a vida de advogado. Cuidado. Pare com essa cachaça e vá estudar.

Gostei da atitude educada e simpática do delegado, que passou a inquirir Gervásio Neto.

Naquele fim de semana Gervásio se despedia dos amigos. Iria na semana seguinte para Curitibanos para assumir emprego no Banco do Brasil. Naquele momento, portanto, ele não estudava nem trabalhava. E o delegado:

– O que você faz na vida?

– Já compro feito.

– E seu dinheiro cai do céu?

Tudo esclarecido, Gervásio foi liberado, o que aconteceria com os demais.

Informações sobre as personagens deste texto:

– Raimundinho: em 1970 era estudante de arquitetura no Rio de Janeiro. Rebelde, contestador do regime ditatorial, algumas detenções, alimentava o sonho de morar em Londres. Realizou o desejo e tomou gosto por viagens internacionais, que realiza até hoje.

Casado com Fátima, voltou a fixar residência em Parnaíba, com temporadas constantes no Rio , onde mora sua única filha, e Brasília, onde residem os pais e irmãs.

– Gervásio: naquele tempo produziu os primeiros desenhos: charges e caricaturas, que já prenunciavam o grande artista que é hoje, com trabalhos conhecidos e admirados por muita gente.

Criador de capas de diversos livros, inclusive de dois de minha autoria.

Aposentado, é casado com Ana Maria, com quem tem duas filhas. Mora no Rio de Janeiro e anualmente vem a Parnaíba.

– Weber: era o músico da turma. Até hoje curte violão. No auge da mocidade integrou a banda de música “Os Bárbaros”, que tocava principalmente em festas realizadas nos clubes chiques da Parnaíba, com a presença maciça de jovens. Bancário aposentado e casado há mais de quarenta anos com Lúcia Beré, com quem tem duas filhas e três netos.

– Vicente, Benedito e João Paulino Soares: trabalhavam no Rio de Janeiro nas áreas financeira e comercial. Voltaram a residir em Parnaíba, onde se casaram e tiveram filhos.

– Cambel: em 1970 estudava e trabalhava no Rio de Janeiro. Formou-se em engenharia. Faleceu há pouco tempo em Brasília,

onde exercia o cargo de auditor fiscal da receita federal.

– Arnaldo: Saiu muito jovem de Parnaíba com a fama de bonitão, que lhe valeu o apelido de “Pão”. Muito disputado pelas mulheres, Arnaldo morreu com menos de quarenta anos de idade, no Rio de Janeiro.

– Maninho: já falamos de sua trajetória de vida. Faleceu no Rio de Janeiro com cerca de 70 anos de idade, deixando esposa e filhos.

– Alcenor: morou no Rio de Janeiro enquanto fez o cursinho pré-vestibular e o curso de direito (1966-1971). Vive em Parnaíba. Casado com Ana Lúcia. Tem três filhos.

Rua Senador Vergueiro

Rua Senador Vergueiro, Flamengo, Rio de Janeiro (RJ).

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