Nesta conjuntura marcada por corrupção de todos os lados, lembrei-me de Graciliano Ramos outro dia, o grande escritor alagoano que nos deixou livros memoráveis como Vidas secas e Memórias do cárcere. Na realidade, ele é uma constante em minha vida, a começar pela leitura de Angústia, romance que nos perturba do começo ao fim da narrativa. Mas dessa vez a imagem que surgiu em mim, ao contrário de outras, foi a do homem público íntegro e zeloso com a cidade que administrou: Palmeira dos Índios, entre os anos de 1927 a 1930. Pena tais qualidades não serem, daquela época até hoje, devidamente valorizadas pelos nossos eleitores. Sob enorme pressão, inclusive de familiares, o velho Graça teve que renunciar ao cargo. Motivo: era muito honesto para o gosto popular. Ninguém pense que governar corretamente é tarefa das mais fáceis, tampouco iguaria desejado por todos. De positivo da frustrada experiência, ele deixou apenas o legado de dois relatórios de prestação de contas remetidos ao governador de Alagoas que, caindo nas mãos do editor Augusto Frederico Schmidt, resultaram em sua descoberta literária.
Esses relatórios encerram, aliás, diversas lições. A escrita sucinta, uma mordaz ironia e a honestidade obsessiva são algumas delas. Penso que seria interessante, além de bastante didático, que os referidos documentos fossem distribuídos a cada um dos prefeitos brasileiros, tanto aos atuais quanto aos eleitos no pleito deste ano. Talvez uma ONG, ou o próprio governo federal, pudesse assumir essa importante tarefa. E olha que não sairia tão caro assim, pois juntos resultam em livreto de pouco mais de 60 páginas. O que tenho em casa veio como parte integrante, encarte gratuito, da revista EntreLivros 17, com apresentação belíssima do neto de Graciliano Ramos, o hoje também escritor Ricardo Filho. Mas eles foram publicados originalmente, pela Record, no livro Viventes das Alagoas, em 1962. Quem sabe esse bendito dinheiro gasto, com o lançamento de tal livreto, não resultasse em gestores mais decentes e menos recursos desviados de suas verdadeiras finalidades.
Mas deixemos de lero lero, como diria Bandeira, e vejamos um belo trecho do primeiro relatório enviado ao governador de Alagoas em 1929, publicado na Imprensa Oficial de Maceió.
“O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração.
Havia em Palmeira inúmeros prefeitos – os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.
Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.
Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles.
Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior.”
Louvando Graciliano Ramos, eterno mestre da boa escrita e homem público da melhor qualidade, deixamos os gestores ruins de lado – prefeitos, governadores e presidente. Sem falar também de nossos representantes nos outros poderes, Legislativo e Judiciário, que não primam por uma atuação ética e republicana.