BRASÍLIA (Reuters) – O acúmulo de dívidas e o fim de um contrato de trabalho levaram a professora Graziele Soares, 35 anos, a tentar cruzar a fronteira do México para viver nos Estados Unidos, como fez uma irmã dela há 16 anos. Presa ao tocar o solo norte-americano, a brasileira relata “os piores dias” de sua vida no processo de deportação ao Brasil, um risco crescente para os que, sem visto, decidem arriscar a sorte.

Entre outubro de 2018 e setembro de 2019 o número de vistos de turismo negados pelos EUA a brasileiros teve um aumento significativo, o maior índice dos últimos 14 anos. Houve um crescimento de mais de 45% na comparação com a taxa do ano fiscal anterior, entre outubro de 2017 e setembro de 2018, chegando a 18,5%, de acordo com dados do Departamento de Estado norte-americano.

No mesmo período, o número de brasileiros detidos pela imigração norte-americana ao tentar entrar irregularmente no país também cresceu exponencialmente, chegando a 17,9 mil presos nos centros de detenção do departamento de imigração.

O número de vistos negados não explica, mas se relaciona com o crescimento do número de pessoas detidas, no que parece ser uma estratégia para desincentivar novas tentativas de imigração de brasileiros aos EUA.

O aperto na política de imigração leva aos dois resultados, para os que tentam o visto de forma legal e para aqueles que, sem essa chance, querem entrar via México, já que o país não exige mais vistos de brasileiros.

Os dados do Departamento de Estado, desde 2006, mostram que a parcela de vistos negados a brasileiros foi caindo rapidamente daquele ano, em que estava em torno de 13%, até 2014, quando chegou a 3,2%. Em 2014 e nos dois anos anteriores, as negativas estiveram próximas do limiar de 3%, sempre dado pelo governo norte-americano como o limite que o Brasil teria que baixar para entrar na sonhada lista de países que poderiam negociar o fim do visto.

Em 2015, no entanto, as negativas subiram um pouco, para 5,4% —de acordo com fontes ouvidas pela Reuters, possivelmente uma resposta ao início de uma crise econômica.

O salto, no entanto, começou em 2016, quando alcançou 16,7% —nesse caso, explica uma das fontes, causado pela soma de um ano eleitoral nos EUA em que a política de imigração já era um tema central e a sensação, entre os brasileiros, de que, com o fim do governo do democrata Barack Obama, a situação ficaria mais difícil.

“Nos meses entre a eleição e a posse do atual presidente americano (Donald Trump), houve um aumento perceptível, motivado pela sensação de urgência”, explicou uma fonte do governo brasileiro que acompanha a situação dos imigrantes.

Em 2017 e 2018, os vistos recusados ficaram um pouco acima de 12%, para então saltarem para os 18,5% atuais.

A quantidade de brasileiros presos e as negativas de vistos são consideradas pelas fontes consultadas pela Reuters como duas faces da mesma moeda: o aumento do controle das fronteiras e a intenção de dissuadir novas levas de imigrantes.

“Acredito que o que aumentou não foi tanto o número de brasileiros tentando emigrar, mas sim o rigor das autoridades locais. Temos aqui uma clara intenção dissuasória”, avaliou a fonte.

Em contato com as autoridades do país, um dos brasileiros presos e deportados contou que ouviu de um dos guardas no centro de detenção onde ficou que ao voltar para o Brasil deveria contar aos amigos no Brasil todas as dificuldades que passou para que outros não tentassem o mesmo caminho, contou a fonte.

“CAI-CAI”

Em El Paso, onde a maior parte dos brasileiros que tentam cruzar a fronteira irregularmente fica presa, o tratamento aos imigrantes é mesmo o de dissuadir novas tentativas.

“Olha, a impressão que a gente tem é que tudo é para a gente se sentir humilhada e não querer mais voltar. E conseguiram. Foram os piores dias da minha vida”, contou à Reuters a professora Graziele Soares, 35 anos, uma das brasileiras deportadas no voo que chegou ao Brasil no dia 8 deste mês.

Ela, como as demais mulheres ouvidas pela Reuters, conta que ficaram presas por cerca de 20 dias, até serem deportadas. Nesses dias, não tinham informação, só puderam tomar banho duas ou três vezes. Tiveram que por fora todos os seus pertences, com exceção dos documentos.

“É feito para a gente querer voltar (para o Brasil) mesmo”, disse Fiama Inácio, 27 anos.

Como as outras pessoas ouvidas pela Reuters, Graziele, que vive em Governadores Valadares, deixou o Brasil em janeiro, com o marido e o filho de 10 anos. Com o fim do contrato de trabalho como professora na rede municipal e dívidas acumuladas, planejou por seis meses tentar a vida dos EUA.

“Minha irmã que já vive legal lá me incentivou, me deu

uma ajuda, nós vendemos algumas coisas e fomos. Eu fiz por causa das dívidas mesmo”, contou Graziele.

Em fevereiro de 2019, a professora e sua família já tinham tentado legalmente o visto, mas foi recusado. “Só me disseram que nós estávamos ‘inabilitados para entrar no país’”, contou. Dessa vez, nem resolveu tentar.

A professora, assim como Fiama e a agricultora Sidnéia Pereira, 36 anos, resolveu juntar a família e tentar o que chamam de “cai-cai”, o sistema chamado pelos norte-americanos de “catch and release”, em que o imigrante irregular, ao ser pego pela imigração e pedir asilo, era solto e tinha permissão para viver nos EUA até uma decisão judicial. A maioria, sem endereço fixo, dificilmente é encontrada pelas autoridades novamente.

“Minha irmã foi assim em junho do ano passado e foi tudo bem. Ficou um dia em um abrigo e foi liberada. A gente pensou que se foi tudo bem com ela, valia a pena tentar”, contou Fiama. Com marido e a filha de 6 anos, a jovem costureira, que mora em Goiânia (GO), decidiu tentar.

No entanto, a lei norte-americana mudou no final do ano passado, justamente pela alegação de que os imigrantes nunca mais se apresentavam à Justiça e a maioria não tinha razões válidas para pedir asilo.

Atualmente, os imigrantes são presos na fronteira México-EUA, levados para um dos centros de detenção no lado norte-americano, onde homens e mulheres são separados —no caso das brasileiras, os filhos ficaram com as mães. Lá, depois de alguns dias, são ouvidos em uma entrevista, não sabem por qual autoridade, por um telefone. Ao terem a entrada negada, entram na lista de deportação.

A nova lei ajudou a engordar a quantidade de pessoas presas nas fronteiras, já que a informação de que o “cai-cai” mudou não chega a muita gente. E a dificuldade de tirar vistos só aumenta.

Fiama nem mesmo cogitou visto. Lembra que a irmã chegou a tentar quando ainda era casada, tinha empresa em seu nome, registro e todos os documentos, e pretendia apenas fazer turismo. Ainda assim, teve o visto negado. “Eu que não tenho carteira assinada, não tenho casa própria, que ia adiantar? Não iam nos dar mesmo”, diz.

Da mesma forma, Sidnéia e o marido, pequenos agricultores em Roraima, e a filha de 14 anos, sabiam que não iriam conseguir o visto, já que não têm renda fixa, carteira assinada e ganham pouco. Mas amigos que vivem nos EUA os incentivaram a tentar o “cai-cai”.

“Estudamos por uns seis meses como fazer. Vendemos um gado que a gente tinha, gastamos uns 8 mil e fomos. A gente queria dar uma vida melhor para nossa filha, ela tem o sonho de fazer faculdade, mas aqui é muito difícil”, disse

Sidnéia e a família ficaram em Governador Valadares ao retornar, na casa de Graziele, que se ofereceu para hospedá-las. Largada pelo voo de deportação em Belo Horizonte, a família não tinha dinheiro para voltar a Roraima. Com ajuda de parentes, conseguiu comprar três passagens de ônibus.

POLÍTICA MIGRATÓRIA

O Itamaraty estima que cerca de 1,7 milhão de cidadãos (brasileiros) vivam nos Estados Unidos hoje, entre regularizados e aqueles que estão lá irregularmente. Apesar de parecer alto, o número é pequeno na comparação com outros grupos de imigrantes. Dados do Bureau do Censo norte-americano apontavam, em 2016, o Brasil apenas como o 20º país com maior número de cidadãos vivendo nos EUA.

Até hoje, o número relativamente baixo de imigrantes e um perfil considerado baixo de periculosidade não havia atraído a atenção do governo norte-americano para os brasileiros.

Mas o recrudescimento da política migratória, combinado com uma boa vontade do atual governo brasileiro de alterar políticas diplomáticas para aceitar sem problemas grande número de deportados, trouxe os holofotes sobre o problema.

Como mostrou a Reuters em reportagem do ano passado, o governo brasileiro voltou a aceitar deportações em massa, em voos pagos pelo governo norte-americano que trazem dezenas de pessoas ao mesmo tempo. O primeiro destes voos chegou em outubro de 2019.

A autorização para os voos com deportados é dada pelo governo brasileiro que, desde 2006, não aceitava mais esse tipo de política.

No final de janeiro, o governo dos Estados Unidos, à revelia do Itamaraty, incluiu os brasileiros no MPP, o programa do de Proteção ao imigrante, que leva para o México pessoas cruzando ilegalmente a fronteira para que esperem naquele país a audiência com um juiz, no caso de um pedido de asilo. Cerca de 50 brasileiros já foram enviados para Ciudad Juárez, do outro lado da fronteira com El Paso (Texas), para aguardarem uma decisão.

O endurecimento da política migratória do governo norte-americano não atingiu apenas o Brasil. Os dados obtidos pela Reuters mostram, por exemplo, que o percentual de vistos negados a cidadãos chilenos passou de 2,4% em 2014 para 13,7% em 2015 e continuou subindo. Em 2019, chegou a 15,3%.

Vizinho mais próximo e com maior população migrante para os EUA, o México saiu de 15,6% de vistos negados em 2014 para 20,2% em 2015 e chegou a 26,7% em 2019. O movimento é o mesmo em praticamente todos os países em desenvolvimento e emergentes listados pelo Departamento de Estado.

Edição de Alexandre Caverni e Maria Pia Palermo

 

 

 

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